Osmar dos Santos
Nasci na roça ouvindo o murmurar do Ribeirão Buriti,
num rancho de pau a pique, coberto por palha indaiá,
feito à sombra refrescante de um frondoso ingazeiro,
rodeado por damas-da-noite, dálias e um mandiocal.
Muito cedo a vida me carregou para uma cidade,
mas meu espírito folgazão e ledo, teimoso que só,
continua por lá, voejando sobre o rincão querido,
bisbilhotando desarranjos trazidos pelo progresso.
Tanto tempo passado e o olhar oblíquo e já avelhantado
esgravata, na caderneta amarelecida de minha memória,
tantas e belas, e doces lembranças ali experimentadas,
em parelha, grande rosário de outras tantas inventadas.
Neste homem inacabado, mas quase em final de construção,
ainda vivem e revivescem, e acredito que seja para sempre,
sensações atempadas pela roda do tempo, o chofer da vida,
abaetando com doces alentos o eterno menino que persiste.
Nos mormaços, homens sesteiam à sombra fresca das árvores,
mulheres e meninos aprestam o amanhã na comezinha labuta,
aqui, a passarada miúda faz um alarido com as sobras no chão,
na capoeira, cigarras adivinham a chegada do tempo de chuva.
O ressoar das mós, o ruído da roda d’água e o troar do monjolo,
o arrozal já emborrachando, esparramando-se perto do terreiro,
o hálito da tarde que chega amornando a noite que cai serena,
o pisca-pisca das estrelas amainando o negror do céu profundo.
Do brejo, chega o dueto melancólico de um casal de três-potes,
lá da capoeira, se escuta a melódica anunciação da fogo-pagou,
logo ali no roçado, na palhada que rodeia a banca de bater arroz,
os vigilantes e desconfiados quero-queros colhem sobras caídas.
A brisa fresca soprando para longe a prosa animada dos vizinhos,
temperada com café e quitandas assadas em forno de cupinzeiro,
amigos que vêm guiados pelo facho luminoso dos lampiões a gás,
se aboletam nos madeiros dispostos no chão batido do avarandado.
.
A meninada a caçar vagalumes pelos verdes pastos em frente:
– “Vagalum tum tum seu pai tá aqui, sua mãe também”.
Pula carniça, pique será, cobra cega, caí no poço, adivinha…
– “Boa noite gente! É hora de dormir. – Meninos… já pra cama!”
Nas noites de Lua Cheia, a campina se tinge em tons azulados
até que a Estrela D’alva inaugure a frescura da alvorada rompida.
A vida acorda o mundo: mulheres, homens, meninos e bichos,
para mais um dia inteiro quarando ao sol e o suor a correr na testa.
Surgida a manhã, ao pouso d’olhar atento, vêm assentar na retina
os reflexos do sol, passados pelos diamantes múltiplos facetados,
urdidos com lágrimas congeladas pelo frio da frígida madrugada,
caídas sobre róseos e fulgurantes cabelos das bonecas de milho.
À beira da velha estrada empoeirada, depois da curva da Capelinha,
a chuva dourada do imponente Ipê Amarelo extasia os passantes dali.
Na várzea mais distante, dispara o coração no peito dos caminhantes,
a estonteante beleza azulada do jacarandá-mimoso coberto de flores.
Imponentes, as palmeiras Buriti, com suas lindeza e elegância singelas,
jogando suas esvoaçantes cabeleiras aos amenos afagos do vento,
urdem arranjadas e graciosas alamedas, que pegam o Ribeirão no colo
e o levam a seu destino, o Grande Rio, que o levará ao mar longínquo.
Não sei como e nem o porquê, mas a vida, mansamente, pouco a pouco
tange do paraíso o menino que não só mora, mas que quer viver em mim,
carregando para cada vez mais distante do frescor das manhãs risonhas,
das diáfanas e fagueiras tardes e do silêncio das deleitosas noites do sertão,
coisas que aqui na cidade só existem na televisão ou penduradas na parede.
Taguatinga – DF, Natal de 2020